Interpelando a aliança entre o Direito e a Psiquiatria

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Rodrigo Tôrres Oliveira – Integrante do Coletivo Ampliado do XVI Plenário do CFP (Psicologia Jurídica)

Investigar as relações entre o campo da saúde mental e da justiça, a partir da problemática do uso e abuso de drogas, e sua incidência sobre a população adolescente e jovem, é tema hoje de grande interesse e discussão. As internações psiquiátricas por força de medida judicial de caráter protetivo ou compulsório evidenciam essa relação, e a coexistência e sobreposição de protocolos e medidas de abordagem, tratamento e reabilitação ao abuso de substâncias, drogas, e medidas jurídicas, de caráter coercitivo, protetivo e segregatório, cujo alcance indica a urgência em se debater os limites de cada campo, os diálogos possíveis e, sobretudo, a necessidade de se construir um espaço de construção teórica e de práticas institucionais condizentes com a complexidade do tema e a realidade da questão.

A complexidade do tema das drogas assume dimensões preocupantes na atualidade. O uso e abuso de drogas se apresenta como um importante problema sociopolítico, colocando questões importantes para as ciências jurídicas e criminais, da saúde e para as ciências humanas, convocadas para instrumentalizar novas práticas que possam responder a esse desafio.

Os usuários de drogas, os abusadores e os dependentes (‘toxicômanos’), não são, absolutamente, criminosos. A criminalização destes indivíduos impede a aproximação deles de forma produtiva, já que dessa maneira eles são inseridos em um circuito diabólico regulado por acusações e culpabilizações (BIRMAN, 2007). Não havendo mais qualquer solução para seus impasses existenciais, a “criminalização faz com que os consumidores de drogas estejam fadados a uma mortificação perpétua, que não mais lhes oferece qualquer caminho para a solução de seus impasses” (BIRMAN, 2007, p.223).

No campo da saúde e, especificamente, da saúde mental, as internações psiquiátricas estão cada vez mais presentes nos aspectos gerais de saúde pública, requerendo o conhecimento técnico e legal dos profissionais de saúde mental para que orientem o enfrentamento desta questão. Com efeito, destaca-se a importância de se proceder a uma avaliação criteriosa e bem fundada no estabelecimento do diagnostico psicopatológico e da necessidade de internação psiquiátrica e sua consequente manutenção, duração e reavaliação permanente. Considera-se ainda a importância de tal perspectiva, visto ser fundamental o exercício avaliativo, reflexivo e clínico sobre questões relativas às internações psiquiátricas e suas consequências objetivas, bem como subjetivas, no agravamento dos quadros clínicos psiquiátricos, no rompimento dos vínculos e na segregação/exclusão social.

Destaca-se o contexto atual de transformações e avanços no campo da saúde mental no Brasil, a partir da lei Paulo Delgado[1], e de diálogos entre políticas e práticas de saúde, de assistência social, de educação, de cultura, de trabalho e renda, capazes de promover direitos humanos e cidadania, enquanto desafio ético e intersetorial[2].

Neste panorama de avanços e desafios, em que o campo dos direitos humanos torna-se imperativo para se promover atenção integral e cidadania, considera-se o estado atual das políticas públicas de saúde mental e o papel do controle social no tratamento dispensado aos portadores de sofrimento mental. Deste modo, a reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial mantêm-se como construções capazes de conferir dignidade e cidadania na abordagem e no tratamento de pessoas que apresentam algum tipo de sofrimento psíquico.

Neste cenário, em que as políticas de saúde mental se afirmam na perspectiva da reforma psiquiátrica e das práticas antimanicomiais, é mister considerar os desafios sempre presentes no tocante à afirmação de uma política e de um conjunto de práticas de cuidado, em oposição a uma ideologia da tutela e das práticas segregatórias no interior dos discursos médico-psiquiátrico e jurídico-criminal-penal.

Assim, verifica-se, na atualidade, o complexo problema das drogas, desde o uso recreativo até os abusos e a dependência (‘toxicomanias’), implicando intervenções no tratamento e na reabilitação, até o agravamento do cenário, complicado por intercorrências e agravantes sociais, cujos fenômenos da violência e da criminalidade apontam a vulnerabilidade e o risco social como fatores importantes na análise da problemática e no encaminhamento de soluções ou saídas possíveis.

Neste contexto, percebe-se uma associação cada vez mais frequente entre os casos de uso, abuso e dependência de drogas, portanto, casos que demandam intervenção das políticas e das práticas de saúde, e os casos que apresentam impasses ou problemas para o campo da justiça criminal e das políticas de segurança pública.

Com efeito, assiste-se à crescente onda de internações psiquiátricas para casos de uso, abuso e dependência de substâncias ilícitas (drogas), sob a alegação sempre reiterada de que tais casos ou indivíduos apresentam algum tipo de risco, para si mesmos ou para a sociedade. Tal panorama agrava-se pela falta de critérios que sustentam tais internações psiquiátricas, muitas vezes levadas a termo e mantidas, por longos períodos de tempo, sem quaisquer benefícios para os cidadãos e a sociedade.

Especificamente, indica-se que a internação psiquiátrica compulsória, aquela por determinação judicial, para o assim chamado tratamento e reabilitação, é responsável por um grande número de casos que hoje se encontram em situação de asilamento e confinamento hospitalar. Na falta de critérios mais claros e precisos, seja do ponto de vista clínico, psicopatológico e psiquiátrico, tem-se optado por esse tipo de ‘tratamento’, desconsiderando-se completamente o assentimento dos sujeitos e a necessidade imperiosa da implicação e participação dos sujeitos nos caminhos do seu tratamento. Opta-se, nestes casos, pelo traçado de um destino compulsório, que prescinde do sujeito, condenando-o à segregação, agora respaldada pela justiça.

De acordo com a Lei 10.216, art. 4º, a internação compulsória, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

 Note-se que a reforma psiquiátrica foi explícita em proibir qualquer forma de tratamento manicomial, asilar e segregatório. Mesmo nos casos excepcionais, a internação psiquiátrica é sempre subsidiária e indicada apenas quando os recursos extra-hospitalares (serviços comunitários) se mostrarem insuficientes, conforme o art.3 e o caput do art.4-, a lei 10216 estabelece que “é vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares […]” (art.4, parágrafo3). A vedação de tratamento em instituições com características asilares atinge, inclusive, as formas de internação compulsória, ou seja, aquelas determinadas pela justiça (art. 6, parágrafo único, III). As condições de segurança do paciente não podem ser outras do que a efetividade dos seus direitos, dispostos no art. 2, parágrafo único, estando proibida a forma asilar, por constituir tratamento desumano, abusivo e invasivo (CARVALHO, 2013, p. 85). Com o advento da Lei da Reforma Psiquiátrica, independentemente das vias de acesso aos serviços públicos de saúde mental (internação voluntária, involuntária ou compulsória), o tratamento prestado deve ser equânime e regido pela lógica da desinstitucionalização. Isto posto, a prioridade estabelecida na reforma é o tratamento em ambiente menos invasivo possível, preferencialmente em serviços comunitários de saúde mental ou em instituições ou unidades gerais de saúde que ofereçam assistência aos portadores de transtornos mentais, visto ser a finalidade permanente a reinserção social do paciente em seu meio (art. 4, parágrafo 1).

A instituição de um saber-poder sobre a doença mental, o crime, os desvios, as chamadas anormalidades, a dependência às drogas, os conflitos sociais e urbanos, é uma realidade promulgada desde o positivismo criminológico surgido no sec. XIX e presente ainda nos dias hoje. Nas atuais classificações psiquiátricas, temos o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) (2013) e a décima revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Nesses dois grandes manuais, a abordagem descritiva e a diversidade de doenças, subtipos, etc. indica a complexidade do campo da psicopatologia e da saúde mental, bem como a inclinação por certa feição classificatória baseada primordialmente em sinais e sintomas, semiologia dos quadros clínicos. Indica-se o fato de que a CID 10, dado seu alcance e prevalência internacional, é hoje utilizada com fins pragmáticos e utilitaristas. Separando-se da Psiquiatria psicodinâmica, da Psicologia clínica e da Psicanálise sob a influência de uma concepção comportamental da condição humana, e desde que as últimas versões do Manual diagnóstico e estatístico dos distúrbios mentais (DSM) tornaram-se a única referência “científica” para a classificação das doenças mentais e dos distúrbios psíquicos e comportamentais, a Psiquiatria renunciou a qualquer forma de missão salvadora para se colocar a serviço “dos laboratórios farmacêuticos e da ditadura da perícia técnica” (ROUDINESCO, 2005, p.87) [3].

O positivismo é a grande permanência no pensamento social brasileiro, constituindo-se como uma cultura fundada em esquemas classificatórios e hierarquizantes de patologização, nos quais “os tratamentos vão dar conta dos seres humanos recuperáveis e tratar de neutralizar os irrecuperáveis. A humanidade divide-se agora entre os normais e os anormais, a loucura e o crime serão alvos de terapêuticas sociais” (BATISTA, 2011:42). Acresce-se a isto a problemática das drogas e suas relações com os indivíduos e o corpo social, culminado na institucionalização desta relação por meio da criminalização e penalização (legislações e judicialização), internações hospitalares determinadas por medidas judiciais (‘terapêutica’, justiça compulsória e controle social). Segundo Basaglia, os graus de aplicação da violência nas escolas, famílias, fábricas, hospitais e prisões dependerão da necessidade de ocultá-la ou disfarçá-la[4]. Nos nossos sistemas, a concessão de poder aos técnicos disfarça a violência, mistificando-a através do tecnicismo, cujo objetivo é fazer com que o objeto da violência se adapte sem chegar a ter consciência e sem reagir. Sua função é ampliar as fronteiras da exclusão, descobrindo tecnicamente novas formas de infração ou desvio, produzindo a ação técnica reparadora, seja de tratamento ‘penal’, coercitivocompulsório, moral, que adapte os indivíduos à aceitação de sua condição de “objetos de violência”, perpetuando o processo de violência global (BATISTA, 2003).

Acompanhando Foucault, no ponto em que se encontram

O tribunal e o cientista, onde se cruzam a instituição judiciária e o saber medico ou científico em geral, nesse  ponto são formulados enunciados que possuem o estatuto de discursos verdadeiros, que detém efeitos judiciários consideráveis e que tem, no entanto, a curiosa propriedade de ser alheios a todas as regras, mesmo  as mais elementares, de formação de um discurso científico; de ser alheios também às regras do direito (FOUCAULT Apud CARVALHO, 2013, p.69).

Nesta relação entre verdade-justiça, pressupõem-se uma pertinência essencial entre o enunciado da verdade e a prática da justiça. A lei penal e a psiquiatria (“irmãs no controle”) estabelecem padrões similares não apenas para as decisões dos juízes e os diagnósticos dos psiquiatras, mas também para classificar os comportamentos-padrão que serão considerados anormais[5].

O discurso correcional ou curativo é sempre instrumental, legitimando as intervenções violentas contra o sujeito em nome de sua própria saúde mental. A violência e a exclusão estão justificadas por serem ‘necessárias’, como consequência da finalidade educativa ou da ‘culpa’ e da ‘doença’ (BASAGLIA, 1985).

Importa dimensionar o universo dos quadros psiquiátricos referidos como de intoxicação, síndrome de abstinência, transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de substâncias psicoativas e outras drogas. As relações entre o diagnóstico psiquiátrico desses casos, observado em laudo, e as medidas jurídicas de internação compulsória e protetiva, adotadas a partir disso, devem ser observadas e problematizadas. Evidenciar as relações existentes entre as internações psiquiátricas e seus motivos clínicos, jurídicos e sociais contribuirá para um maior conhecimento sobre a realidade das internações psiquiátricas compulsórias ou por medidas protetivas, seus fundamentos clínicos e jurídicos, objetivando a reflexão crítica e a adoção de políticas em conformidade com a lei 10.216 da Reforma Psiquiátrica.

 

Referências Bibliográficas:

 

  • BASAGLIA, Franco. A instituição negada. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
  • BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: Drogas e Juventude Pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
  • _____ Introdução critica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
  • BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: A Psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
  • CARVALHO, Salo; WEIGERT, Mariana de Assis Brasil. A Punição do Sofrimento Psíquico no Brasil: Reflexões sobre os impactos da Reforma Psiquiátrica no Sistema de Responsabilização Penal, In: Revista de Estudos Criminais, n.48. São Paulo: Itec Sintese, 2013.
  • CARVALHO, Salo. Criminologia Critica: Dimensões, significados e perspectivas atuais. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, v.104. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
  • CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
  • FOUCAULT, M. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2003.

• LEI No 10.216, Brasil, 2001.

• ROUDINESCO, Elizabeth. O Paciente, o Terapeuta e o Estado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

 

[1]                      [1]Lei 10216, de 2001, que dispõe sobre a nova política de saúde mental do estado brasileiro.

[2]                      [2] IV conferência de saúde mental (2010), cujo tema foi: Direito e Compromisso de todos – consolidar avanços e enfrentar desafios. Com três subeixos, o terceiro indicava os direitos humanos e a cidadania como desafio ético e intersetorial.

[3]                      [3] ROUDINESCO, Elizabeth. O Paciente, o Terapeuta e o Estado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005. Critica acerba, bem fundamentada e corajosa sobre a banalização e instrumentalização das condutas a partir das miragens das sociedades do cientificismo pericial generalizado.

[4]                      [4] Franco Basaglia. A instituição negada. Rio de Janeiro, Graal, 1985, p.101.

[5]                      [5] Nils Christie. A indústria do controle do crime. Rio de Janeiro: Forense, 1998.